segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

CABEÇA E POEMIA NO VI FESTIVAL DE RUA DE RECIFE


DA ILHA DE DEUS ÀS TENTAÇÕES DO TERRITÓRIO LIVRE DO MESTRE DENGOSO – A EXPERIÊNCIA DE RECIFE-PE-BRASIL


Um massacre. Um orgasmo cenopoético. Uma festa.

"Foi gratificante a nossa participação no festival de Teatro de Rua no Recife. Onde ficamos, no bairro da Imbiribeira, e onde nos alimentamos - na ILHA DE DEUS - nossa louca programação. Três ações fantásticas com três públicos bem diferentes" – disse Júnio Santos.

É claro que de início fica sempre aquela pergunta: meu Deus, como vai ser? Será que temos pernas para tanto? Talvez pelo zelo com o que fazemos, pela responsabilidade ética que temos de fazer o melhor diante de um mundo imperfeito e desafiante, louco por novas possibilidades de reconstrução, doidinho para ser reinventado. A responsabilidade de ir brincar de arte no olho do furacão é tamanha, considerando a vulnerabilidade das relações humanas nos tempos atuais, principalmente nos grandes centros urbanos. Aparentemente não era para ser assim porque foi da periferia que viemos, é neste contexto que vivemos, produzimos nossa arte, seguimos nossos passos como pobres mortais. Contudo é sempre um desafio quando a gente se desloca para fazer algo em outro lugar diferente do nosso. Cada território cria suas próprias senhas que nos exigem certos saberes, cuidados, conhecimentos e capacidade para entrar e navegar em seus universos singulares interiores. É desafiador construir dialógos com esses territórios segregados e desmanchar o signo da violência propagada pelas elites por meio das mídias como produto unicamente da gente humilde, buscando esconder os efeitos cruéis dos arranjos econômicos e culturais que propiciam verdadeiros apartheids entre os periféricos e as classes dominantes, gerando muita insegurança, desconfianças mútuas, relações truncadas e perigosas. O clima é de cisma e enfrentamento, de guerrilha. Como as classes favorecidas possuem mal ou bem seu escudo, a proteção do Estado, e os desfavorecidos não gozam desse direito, acabam criando seus próprios mecanismos de defesa, construindo suas ilhas, seus guetos, seguindo uma lógica muita própria de independência relativa e dissidência permanente perante o pré-estabelecido social, econômica e culturalmente. E nós que praticamos não a arte do povo, mas direcionamos nosso foco para ele e os problemas que o afligem, nos sentimos engrandecidos e até envaidecidos quando conseguimos chegar o mais perto possível de sua cotidianidade, em seus nichos, onde heróica e sabiamente tenta escapar cada um a seu modo. Para nós artistas-cidadãos, trabalhadores da arte, isto significa também reconhecimento e respeito pelo que representamos para essa gente. Porém, as relações de qualidade não se dão à toa, não caem do céu. Elas são frutos de muito esforço daqueles que as perseguem. Requer postura de humildade, pé no chão, horizontalidade e equilíbrio das condições, compartilhamento das alegrias e também de alguns sacrifícios. Daí aquela população perceber que nós, como diz muito bem Filippo Rodrigo em seu belo depoimento:

"para começar não ficamos em hotéis (de luxo nem pensar – grifo nosso) nem comemos em restaurantes do Recife, nos hospedamos na sede da Associação dos Moradores de Imbiribeira e realizamos nossas alimentações na Ilha (agora chamada por todos ) de Ilha de Deus."

O povo leu nosso propósito de, como sentencia Filippo, "como artistas livres de rua, não poderíamos ter desejado coisa melhor: podermos sentir de perto o dia-a-dia dessas comunidades, seus problemas, seus anseios e suas lutas para transformar suas realidades. Foi um prazer muito grande como cidadão-artista poder viver e conviver esses dias com esse povo alegre e batalhador. Sabemos das dificuldades que foi realizar o festival nesse formato, rompendo com certas mordomias e com certos confortos que todos já estavam habituados a ter. Parabenizo todos do festival que lutaram para que os grupos tivessem uma maior interação com as comunidades e que isso com certeza é o grande objetivo do teatro que fazemos: descentralizar, oferecer aos que não têm acesso nossas práticas e experiências."

Foi assim em Recife, durante o VI Festival de Teatro de Rua, quando ficamos hospedados e no convívio de três dias intensos com a população de Imbiribeira e Ilha de Deus. Logo na chegada fomos recebidos por uma legião de crianças e sob os olhares curiosos dos moradores - uma espécie de registro e estudo imediato na perspectiva de um provável convívio pacífico ou eliminação de tais corpos estranhos. Esse estranhamento não se dá apenas de um lado. Ele acontece naturalmente por parte do lugar e de quem chega. É realmente uma sensação esquisita de incertezas, resistências e desejo de conhecimento mútuo.

Um pouco de paciência e vontade e a primeira prova estava vencida: fomos acomodados na sede da associação comunitária, conhecemos o espaço da apresentação do Cabeça de Papelão e experimentamos a ponte sobre a maré que separa a Imbiribeira da Ilha de Deus. Lá jantamos e fizemos os primeiros contatos, construímos os primeiros vínculos. À noite, como afirma Júnio Santos:

"O CABEÇA DE PAPELÃO rolou após um cansativo culto de protestantes que não protestam nada. O povão esperou, assistiu uma hora e vinte e cinco minutos em pé, conversou após o espetáculo mais uma meia hora. Isso chegou perto das 23 horas."

E Filippo complementa a fala do Júnio: "tivemos um povo participativo que aplaudia e comentava sobre o que dizíamos em nossa apresentação. Creio que o Cabeça de Papelão é bem isso - falamos não de algo novo, algo que não existe e sim do que vivemos todos os dias em nossas periferias de nosso país nas grandes e pequenas cidades, talvez por isso é que conseguimos ter um contato direto com o público."

Além de concordar com o Filippo, lembramos que a história do escambo é feita de gente também que dorme no chão ou em redes, hospeda-se em escolas e casas de famílias, galpões de assentamentos rurais, em condições de precariedade semelhantes às em que vive o público que nos assiste. Portanto, não há nenhum espanto, nenhuma novidade em relação a isso. Por outro lado, não podemos achar que é natural e aceitar que tal situação se perpetue e seja assim para sempre amém. Precisamos entender que se trata de um contexto de desigualdade social aguda gerada por um modelo econômico que insiste em se renovar séculos a fio por meio de crises forjadas, planejadas para dar sustentabilidade ao capitalismo que nunca foi e jamais será sustentável. O capitalismo tem demonstrado ao longo da história que só pode existir à custa de muita violência, miséria, exploração do homem pelo homem e deste para com a natureza. Por isso, nossa arte é também uma prática pedagógica de resistência, de liberdade, denúncia e transformação do que precisa ser transformado para melhor e em benefício sempre dos que mais precisam. Nós e nosso público somos espelhos da arte que fazemos e defendemos. Falamos não apenas do que sentimos e desejamos, mas principalmente do que vemos e vivemos cotidianamente em nossos territórios. Creio que quando estivermos dormindo confortavelmente e comendo do bom e do melhor que, aliás merecemos, é porque alguma coisa terá mudado na vida da nossa gente. Manifestar isso é identificar o que fazemos com o que sonhamos para o mundo. Outra vida é possível para todos e não somente para 10º\º de espertos e usurpadores da boa fé e do esforço do restante.

"As manifestações da gente

ninguém sente, ninguém vê

porque a gente grita pra dentro

e ainda teme tudo que pode acontecer


As manifestações da gente

são exigentes, mas ninguém crê

porque a mente de muita gente

infelizmente faz merecer


As manifestações da gente

são indiferentes ao amanhecer

As manifestações da gente

são irresistíveis ao entardecer"

(Lima, Ray Lima – in Ultrapassagens)


CABEÇA DE PAPELÃO: o espetáculo

Se quiséssemos, até poderíamos divagar um pouco sobre o espetáculo do ponto de vista de sua realização artística, mas creio que não vem ao caso aqui. Sobre isso conversamos de forma espontânea com a participação do elenco e do Júnio Santos. Vimos que pesou muito a não experiência de rua de grande parte dos atores, a ansiedade da estréia, a inauguração dos figurinos, etc. Parecia em alguns momentos que os atores se escondiam atrás das músicas que, por sinal, são muito potentes e abrilhantam o espetáculo. Outro aspecto que está ligado á inexperiência de rua da maioria dos atores é que pelo que sei, todo o processo de montagem foi feito em lugar fechado. Nestes casos, quando o grupo sai para a rua há um impacto natural. É tudo muito diferente e por mais que se abra a boca a voz parece não existir ou ser insuficiente para atingir a roda. Há que se ampliar tudo: corpo, voz, gestos, andar, expressões, etc. E construir o retorno disso tudo, perceber os rebatimentos, a sintonia com o público é sempre muito difícil de início. Outra tendência é os atores se amontoarem num canto da roda como se temessem movimentarem-se sozinhos. É como se buscasse uma proteção contra o gigante que está em sua volta, frente a frente, de todos os lados e direções. Então danam-se a querer atuar em bloco como jogador de time de pelada que para aonde a bola se desloca corre todo mundo atrás, deixando muitos espaços do campo vazio, desguarnecidos, desabitados e sem vida. Trata-se de um problema e o público sente-se descuidado, rejeitado. Claro que o que estou fazendo aqui é uma caricatura, mas me referindo ao que pude observar e com a intenção de contribuir com reflexões que possam interessar ao grupo. Sim, o figurino está bem. Apenas observei algumas dificuldades em relação aos pênis – eles precisam ganhar mais mobilidade e expressividade, aproveitar o poder simbólico que têm na peça. Também os cordões que ligam os mendigos, quem sabe elásticos não funcionariam melhor. Quanto aos atores são de uma potencialidade incrível. Todos têm acúmulo, leitura de mundo, criticidade, poder expressivo, dominam várias linguagens, etc. É um grupo muito divertido, apenas precisando amadurecer as relações de grupo ou pelo menos de elenco dentro e fora de cena. Percebemos algumas reclamações no trato com o material, no cuidado com outro, na relação fora de campo com aquilo que tem que ver com o antes e o pós-espetáculo. Creio que é uma questão de tempo para o Cabeça de Papelão explodir por aí como um marco do nosso teatro.

Em relação ao processo de facilitação sou suspeito porque o velho do cabelo branco, meu irmão Júnio Santos, é um experimentador de linguagens e formas de fazer arte. E nisso só tem avançado, amadurecido. É nosso mestre do teatro popular. Júnio hoje representa um teatro radical popular que muitos tentaram fazer e não conseguiram realizá-lo com tanta graça, ligando o didático ao estético, o político ao artístico. Lembra nossos Brecht, Piscator, Vianinha, Amir, entre tantos outros. O diferencial do Júnio está na desenvoltura e liberdade com que exercita essa arte milenar e tão humana de forma absolutamente coletiva e participante. Cada vez mais foge da figura do diretor e busca dividir as responsabilidades de montagem e realização cênica com todos, onde todos são atores, gestores, cuidadores e realizadores do processo. O Cabeça de Papelão representa um marco de teatro inclusivo, feito em rede, articulando atores de diferentes grupos, extraindo deles o que possuem de melhor para arquitetar possibilidades cênicas de boa qualidade, dando a eles a oportunidade de auto-responsabilização por tudo que acontece ou deixa de acontecer em toda concepção e realização do trabalho. Um outro ganho fica para os grupos desses atores que podem e devem também usufruir essa rica experiência.



DOS ATOS CENOPOÉTICOS – DA POEMIA DO MUNDO -
Cenopoesia: linguagem enriquecida ou super linguagem?

A festa cenopoética começa com uma roda no bar do caranguejo de Dafoi. O Júnio narra:

"no domingo pela manhã, acompanhados do Jailson do Alto José do Pinho mais um companheiro e duas companheiras, fizemos um cortejo poético pelas ruas, becos, vielas, campos e pelos diversos bares da Ilha de Deus. Sempre com o olhar de felicidade da população.

O Filippo lembra e descreve o momento como de grande reflexão estético-política e resistência cultural:

" o cortejo dos molambos desfilou pelas ruas(vielas) da Ilha de Deus. Um momento fantástico de nossa viagem - andamos, cantamos e dissemos poesias para crianças, homens e mulheres da Ilha. No pingo do meio dia os molambos visitavam casas, campos de futebol e bares entoando para os quatro cantos do Recife: " bocado de molambos molhados, manchando chão". Molambos desprezados pelo grande jogo político de poder, pela corrida predatória pelo capital, pela falta de política pública que ofereça dignidade e formas de vida mais justas para todos. "Mas o que tinha dentro era gente ainda, era gente ainda". Gente que mesmo sem dinheiro, sem moradia digna, através da cultura e da arte vislumbra uma mudança de paradigmas. Gente ainda que atravessa todos os dias a ponte da exclusão. Gente ainda que se mobiliza, se transforma como o mangue em que vivem."

Assim foi. Sob o comando de um abre alas da comunidade, um morador que se propôs a nos guiar pelos labirintos envoltos pelo manguezal e sob o signo e o movimento misteriosamente regular das marés, fomos penetrando pelas intimidades de uma Ilha que é a um tempo, como diz Filippo, paraíso e apartação social, espaço geográfico com seus limites naturais e universo infinito e ilimitado de criação e possibilidades humanas. A Ilha não é vazia. Nem de sentido nem de existência. A Ilha é um espelho côncavo do Recife antigo da colonização de Cabral a Nassau, das lutas por liberdade e justiça de Zumbi, Caneca, Nabuco e Paulo Freire. Lá encontramos cú de cana, cineastas, músicas, poetas, grafiteiros, pescadores, empreendedores, comerciantes, poetas, trabalhadores e amantes da vida.

"os espaços têm cheios

vãos e fuis

pontas e meios

veias e veios

vazios não. vazios não.



os espaços da vida.

os espaços têm vida, não são em vão.

vazios não. vazios não. vazios."

(Lima, Ray Lima – in Tudo é Poesia Vol. I)


Animado por nossas cantigas o cortejo seguiu seu destino como veículo poderoso de comunicação e encontro da arte com a gente. A alegria estampada no rosto das pessoas quando nos aproximávamos de cada família, de cada barraco improvisado, de cada grupo, de cada pessoa revelava a compreensão clara do que a música queria expressar:

"bocado de molambos molhados

manchando o chão,

mas o que tinha dentro

era gente ainda

era gente ainda



cá de baixo

a gente vê tudo pixititinho:

bocado de molambos embolados

flutuando pelos céus

ralando aqui no chão



mas quando a gente olha, vê

que dentro tem um quê

o que tinha dentro

era gente ainda

era gente ainda"

(Lima, Ray – in Lâminas)

À tarde foi a POEMIA DO MUNDO - espetáculo que num sabe como começa tampouco quando termina - na praça do RECIFE velho. Juntamos as poesias do mundo com o mundo do pastoril de verdade do Mestre Dengoso. Uma maravilha. Fiquei até sem palavras para descrever o que foi viver esses momentos – confirma seu prazer e sua emoção, Júnio Santos.

Filippo, mais uma vez retomando a palavra, diz:

na praça do arsenal, lá pudemos brincar, incitar, discutir e provocar sentimentos e reações sobre esse mundo, nosso mundo. Sobre nossas paixões e nossas amarguras.

É, parece que todos estávamos mesmo em êxtase. O desafio de repente, a construção do espetáculo em cena, o improviso, o repertório, as aprendizagens mútuas, o encontro entre pessoas, onde o artista é um ser comum que interage sem falsetes com seu povo, o interlocutor mor, a razão de ser da nossa arte. A cenopoesia encarna sua configuração mais aberta e sincera que uma linguagem pode atingir desde que nasceu nos anos 80, no Rio de Janeiro. Essa liberdade quase libertina é que leva o artista a fazer amor em cena sem precisar despir-se. Isso que aconteceu no ato da bailarina de Robson, quando Júnio e Josy resolvem construir imagens-textos com belezura, boniteza e simplicidade. Eles fizeram amor sem tirar a roupa. A boa arte é assim. É transparente. E o público sente, enxerga plenamente o ato amoroso da boa arte. Mexendo um pouco na frase de Lorca, diríamos, "Como sabem ver, quando vêem."

Por fim, o que ficou dessa Poemia de Recife? Filippo responde:

não tenho muito do que falar: ensaiamos na hora, brincamos do improviso, e isso faz com que nos aproximemos muito mais do que já somos. É sempre revigorante ver o Júnio e o Ray juntos. São uma força em conjunto, é legal a energia que rola entre os dois fora e dentro de cena.

Bem, acho que devemos ficar por aqui com tantas lembranças boas de nossa estada em Recife. Que a vida nos convide para outros momentos como esse. Bola pra frente.

Ray Lima (membro fundador e articulador do Movimento Escambo e dos Grupos Pintou Melodia na Poesia e Poemia do Mundo)
Maranguape, 21 de dezembro de 2008.

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